Entre janeiro e julho, minha relação com o José é só online; eu ligo e mando mensagem pra saber da vida dele. E o meu irmão é seletivo com o que ele conta. Se o garoto manda uma foto do cabelo cortado, é pelo gesso na foto que eu descubro que em algum momento ele quebrou o braço. Quando ele foi atropelado eu fiquei sabendo dois anos depois. Nesse bimestre ele tirou zero em Empreendedorismo — matéria nova que algum demente inventou pro ensino médio — e nem pediu ajuda. Só não reprovou porque o professor foi demitido por dar uma prova de múltipla escolha em que todas as respostas eram “C”.
Mas isso é o de menos. O que realmente importa ele me conta. Vez em quando eu recebo uma mensagem assim:
E com ela eu fico sabendo que ele arranjou um boné. Se eu perguntar onde, ele responde:
Seis meses é muito tempo. Você pode ver uma pessoa em dezembro e em julho descobrir que agora ela usa boné e joga bingo. É assim que as pessoas se afastam. Por isso que todas as férias da escola o José passa comigo.
Ano passado, quando eu ainda nadava no dinheiro de uma corporação anônima, eu e o meu irmão passamos as férias no Egito. Pirâmide, esfinge, Abu Simbel, todos os hits. Foi lá que o José se tornou a primeira pessoa na história da humanidade a visitar o templo do faraó usando uma camiseta do Sana.
Agora eu não tenho mais o cheque em branco, mas o espírito das férias com o José é o mesmo: educação cultural. O moleque é uma tabula rasa. Não viu Superbad, nunca comeu um burrito, não sabe o que é um mosh. Se a gente assiste uma série filmada em 2007 ele interrompe o episódio pra perguntar se tal ator “ainda tá vivo”. Alguém precisa intervir.
Claro, o projeto Bildungsroman também é pra mim. Se não fosse pelo garoto aqui em casa, eu mesma ia passar as férias chapada no sofá com o notebook aberto em uma loja de pratos de cerâmica, tomando o primeiro gole d’água às cinco da tarde. Mesmo que eu faça exatamente a mesma coisa com ele aqui, é mais legal olhar os apps ouvindo o moleque cantar o tema de Missão Impossível no chuveiro.
O plano é o seguinte: uma maratona cultural em dez dias. Almoçar pato ao molho de tangerina, burrito de barbacoa, um combinado do Aizomê que quase me bota no cheque especial. Show de metal na Santa Cecília, escape room na Faria Lima. E filmes. Barbie, Oppenheimer, kung fu dos anos 80. Abrir a cabeça do garoto e ver o que eu consigo enfiar dentro.
respostas
Falando em enfiar dentro, hora de responder o telegram.
laurinha eu tava no letterboxd stalkeando minha ex pra ver se ela ta assistindo filme triste e vi vc dando 4 estrelas pro missão impossivel novo. porque vc odeia o cinema independente? abraço! (T.)
ODIAR o cinema independente? Como assim odiar. Presumes? Gentileza sua. E mais gentil ainda dividir com a gente esse momento tão humano, tão universal!, que é buscar consolo na loucura alheia. Pena que o last.fm não ganha um único usuário novo desde 2011… ali sim é só chegar que já pega o relatório completo. Interpol, 590 scrobbles nos últimos sete dias. Sabia! Sabia que você não era feliz!!
Tendo dito isso, odiar eu não odeio. O problema do cinema independente é que ele não passa no cinema. Tem que ver em casa. E a conta grátis de estudante que o Mubi me deu em 2019 parou de ser grátis devido ao PADRÃO SOCIAL imposto pela SOCIEDADE de que a MULHER precisa terminar a graduação em quatro anos. Nada de streaming pra fudida aqui. Só baixando.
É muita responsabilidade baixar filme que ninguém conhece. Cê pega o torrent e tá lá parado, 0 leech / 0 seed, esperando uma boa alma te ajudar. Aí vem um cara na Lituânia subindo a 100kb/s. Resolvido? Não. Dois dias depois o download termina e o cara some. Pesou pro lado dele e agora o problema é meu— eu que agora sou a única pessoa do mundo com o arquivo na mão. A preservação desse filme que eu ainda nem assisti depende de mim. Parece que largaram um filhote na porta da minha casa.
Missão Impossível não. Alguém já cuidou de tudo. Preservação digital? Que se foda! Só o que esperam de mim é que eu assista três horas do Tom Cruise sendo Ethan Hunt, um espião cujo superpoder é ter lido Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas. Claro que eu assisto. Pra mim é uma honra.
Tem uma hora nesse Missão Impossível que o vilão quer impressionar o Tom Cruise falando de computador, o que geralmente não é uma coisa com a qual alguém se impressiona. Daí ele diz assim: a Entidade faz milhares de quadrilhões de cálculos por segundo. Milhares de quadrilhões? QUADRILHÕES não tava bom já?
Pra mim é um prazer conferir ao novo Missão Impossível o selo oficial de aprovação Respondendo. Foi isso que você perguntou? Boa sorte!
Oi Laurinha! O que vc ta achando de BARBENHEIMER, o evento do ano? Vc viu os filmes? Em qual ordem? Valeu o hype? (L. S.)
Claro que eu vi. Tá maluco? Geral falando dessa porra sem parar e eu não vou ver?
Cada dois tweets que passa na timeline um é o zoião azul do Oppenheimer e o outro é literalmente qualquer objeto rosa. Apareceu o TEMER vestido de Ken no PRÓPRIO PERFIL DO TEMER. Faltando um mês ainda pra estreia eu já não aguentava mais. “Barbie ganha novo trailer com mais detalhes da história” não precisa! Tá bom já! Libera logo a porra do filme pra eu ver!
Quebrei o cofrinho do substack e fui eu e o José pro cinema.
✨ BARBIE ✨
Qualquer mulher que já tenha pensado na condição feminina por mais de cinco minutos não vai encontrar em Barbie nenhuma ideia nova. Tudo bem. Pra um comercial de brinquedo faz mais sentido ficar no raso, e mais raso que o liberalismo não dá. É o equivalente intelectual de brincar de boneca.
O problema é quando a crítica social que não é séria se leva a sério, ou pior, se vê na obrigação de ser levada a sério. Coitada da Greta. A diretora passou os últimos dois meses falando por aí que o filme dela não é só um filme da Barbie, é uma SUBVERSÃO da própria ideia de Barbie. Quem pediu isso? Todo mundo. Barbie tá consciente demais da própria audiência. É um filme escrito pensando em como vai ser recebido, antecipando críticas de todos os lados, explicando e re-explicando um tipo de feminismo que já era cansado nos anos 70.
Claramente rolou ali alguma dose de culpa ou vergonha de uma artista várias vezes indicada ao Oscar — por obras focando em mulheres! — se envolver num projeto desse. (Pro marido e co-autor dela não é novidade; entre dois filmes muito bem premiados, Noah Baumbach escreveu Madagascar 3 - Os Procurados pra pagar o próprio divórcio.) Daí esse lance de subversão virar um terceiro ato arrastadíssimo, cheio de papo de patriarcado e sermão sobre Como É Difícil Ser Mulher Em Um Mundo Dominado Por Homens. Se algumas mulheres dominam outras não vem ao caso. Barbielândia é uma democracia racial! Circulando!!
Uma pena que a Greta se desdobre tanto pra justificar a existência de Barbie quando esse é justamente o melhor projeto dela. Depois de sei lá quantos anos de Avengers cor-de-lama dando o tom da pobreza visual do cinema, do nada aparece um blockbuster todo ROSA. Rosa bebê, rosa choque, chiclete, neon. Não é à toa que a referência mais comentada nas entrevistas foi Guarda-Chuvas do Amor, um francês coloridíssimo dos anos 60. A estética quarto-de-BBB mata a nossa vontade de ver uma coisa EXUBERANTE, de ter uma experiência visual que não seja só realismo cinza e marrom.
Guarda-chuvas do Amor também é musical: outra coisa que já não se faz como antes. Nos anos 50, os bons musicais fechavam um estúdio e pintavam o chão e as paredes num gradiente de cor até parecer tudo uma coisa só, um mundo à parte, uma fantasia technicolor. Aí foram apertando orçamento, perdendo ambição, as vozes ficaram mais fracas, as cores mais mudas. O número musical dos KENs no finzinho do filme é o único retorno à tradição que eu aceito.
Falando em Ken, outra vítima da insistência do filme no tatibitate político é a Margot Robbie. A pobre da Barbie fica com todas as partes chatas do filme, com direito a discussão sobre maternidade, sapato ergonômico e Suprema Corte (!?). Aliás, que PORRA de utopia é essa com um STF no meio? As Barbies não problematizaram ainda um cargo político vitalício que não é eleito pelo povo? Ainda não. Vamos com calma.
Enquanto a loira cuida disso, todo o bom humor do filme fica com os homens. Chega a ser engraçado que uma história tão preocupada em centrar mulheres deixa espaço pro Ken roubar a cena. O lance dele com a médica no trailer é só um de VÁRIOS momentos muito engraçados, nem tanto pelo roteiro quanto porque o Ryan Gosling tem o melhor timing cômico de qualquer ator vivo. Duvida? Problema seu. Quem já viu The Nice Guys sabe se o homem é foda ou não. Dá até um alívio quando ele aparece com aquela cara de idiota e cabelo platinado. Finalmente! Finalmente alguém vai me divertir!
É muito fácil criticar uma obra pensando se tal ângulo vai ter uma influência errada, se eu me vejo representado, se a moral do filme condiz com a nossa. E aí o filme que é pra subverter fica de gracinha e o que é pra ficar de gracinha “subverte.” Fica tudo num meio termo horroroso, ninguém dizendo nada que presta. Foda-se a morte do autor, quem tem que morrer é a audiência. E deixar o autor em paz! Aí a pobre da Greta vai poder brincar de Barbie sem meter um papo de calouro da sociais no meio enquanto EU, que de todas as pessoas no mundo sou a que mais sofre, vou poder gostar de ir ao cinema.
E já que o assunto é filme sem controvérsia, vamo falar de bomba atômica.
☢️ OPPENHEIMER ☢️
Virou clichê abrir resenha de Oppenheimer dizendo que “ah, geralmente eu não gosto das coisas do Nolan," mas eu gosto sim. Eu gosto! Tenho um certo carinho com a breguice dele… uma simpatia pela figura de um homem que continua escrevendo os próprios roteiros mesmo não sabendo escrever. Humildade acima de tudo. E Oppenheimer tem todos os trejeitos do Nolan que eu aprendi a amar: a frase final do filme parece encerramento de matéria do SPTV.
A escolha de elenco do Nolan também é muito engraçada. Ele é meio dodói com essas coisas. Em Inception ele pegou o Cillian Murphy pra fazer o refém de um sequestro, sendo que o Cillian como pessoa tem a altivez de espírito de um mártir na fogueira. O cara lá tentando convencer que tá em pânico e só o que a expressão transmite é paz interior. Compostura. Dignidade.
O milagre de Oppenheimer é que tudo que normalmente faria o Nolan cagar no pau acaba virando vantagem. Cillian é o Oppenheimer perfeito, andando por aí com o semblante sério mesmo magro e zoiudo de dar dó. O drama em torno da bomba faz qualquer papo pastelão parecer realista; não tem breguice que seja exagerada demais pra uma situação dessas. E a mixagem de som, que já fez ele passar vergonha de tão desequilibrado o volume (não que eu saberia o que é isso), vira uma arma apontada pra tua cara.
Se eu vejo um filme na estreia, eu vejo no Belas Artes. É meu cinema preferido desde a reprise de Senhor dos Anéis ano passado, que logo no início veio grandona a legenda “blu-ray-torrents.blogspot.com“. Uma das risadas mais gostosas da minha vida. Mas com Oppenheimer eu fiz a romaria até a porra da Vila Olímpia pra ver esse caralho de filme no IMAX. Ah é importante o som é? Ah tem que calibrar o baixo? Calibra aí então, seu otário. Setenta reais nessa merda pra sair daqui com o ouvido zunindo, nem fudendo vale a pena um negócio desse.
Mas valeu. O baixo te deixa maluco. Nas duas horas entre o início do filme e a bomba a tensão não desaperta, vai só construindo no estômago. Chega dar nó. A potência tá ali — tem hora que tu sente que tá pegando estrada de terra —, mas o que impressiona é que é uma coisa CONSTANTE. Parece que o filme inteiro é um trailer. Quando chegou na contagem eu já tava tão agoniada que agarrei no braço da poltrona pra aguentar.
Vai ter muita conversa por aí sobre as escolhas que o Nolan fez contando essa história. O terceiro ato é um porre, mas pra ele é a razão de existência do filme: reabilitar a imagem do pai da bomba atômica. Oppenheimer foi perseguido pelo anticomunismo, desmoralizado, definhou em público; e daí? O projeto Manhattan matou 150 mil. Como diz Truffaut, não existe filme anti-guerra. Nenhum filme é anti-nada. Tudo que é retratado seduz. Você vê os americanos lutando pra inventar a bomba e quando vai ver tá torcendo pra ela dar certo. É do jogo.
Qualquer crítica de Oppenheimer precisa passar por essa conversa, mas não pode ficar só nela. Um filme não é um argumento. Melhor dizendo, não é SÓ um argumento. Tratar de Oppenheimer como se fosse uma tese acadêmica é ignorar o que o filme oferece: a experiência de ver a explosão, de sentir o corpo vibrando. Barbie é legal!, mas Oppenheimer é o filme do ano.
(Se eu mudar de ideia eu aviso.)
RESENHA JOSÉ
Talvez você esteja se perguntando o que meu irmão achou de Barbenheimer. Eu também quis saber. Segue abaixo a Resenha José:
✨ BARBIE ✨
Filme foda.
☢️ OPPENHEIMER ☢️
Filme muito foda.
Té mais.
laurinha, já pensou que por trás desta "acidental" legenda revelando o site de torrents no belas artes com certeza está um funcionário que, assim como eu e você (e tantos outros), é movido pelo quão engraçado cada momento pode ser? apenas mais um caminhando entre nós
Quando sai na record o vlog de viagem do José do Egito?