De tudo que eu li em 2024, TÔ GRÁVIDA!, do casal Viih Tube e Eliezer, foi a única coisa digna de logar no Goodreads.
Livro ruim é bom demais. Nenhum clássico da literatura te cativa como a terceira biografia de um ex-BBB. Tem algo de tão humano em querer se expressar, sentar na frente do computador e não conseguir formar uma frase. Chega a ser covarde virar artista munido de repertório, talento, inspiração; o verdadeiro sacrifício pela arte é abrir o peito e deixar o mundo ver que dentro de você não tem nada.
Nesse sentido, talvez o melhor candidato à primeira leitura de 2025 seja RAVIER COM J, o recém-lançado romance ( ! ) do ex-deputado Arthur do Val, vulgo Mamãe Falei.
Em suas (poucas) entrevistas sobre o livro, Arthur esclarece que a história de Javier é muito mais que um romance — que é outra maneira de dizer muito menos. Trata-se de um homem “passando pelo seu deserto”; algo com que o autor certamente se identifica, tendo seu mandato cassado em 2022 por um incidente que chegou a ganhar página própria na Wikipédia (a pior coisa que pode acontecer com alguém).
Fascinante a questão dos áudios. Poucos casos de ostracismo político foram tão unânimes, tão universais. Tem noção de quanto inimigo você precisa fazer pra Jandira Feghali e Janaina Paschoal CONCORDAREM que você é um merda?
Digo “um merda” com todo respeito, claro. Os insultos citados no artigo são muito piores. ABJETO, VIL, NOJENTO, ASQUEROSO, DEPLORÁVEL, CRETINO, VAGABUNDO — isso vindo desde Randolfe a Carla Zambelli. A certa altura é de se imaginar que algum assessor de imprensa consultou o sinonimos.com.br pra ver se achava um adjetivo que ninguém usou ainda. Virou quase um exercício de escrita criativa; o dep. Gil Diniz, apelidado “Carteiro Reaça”, postou um tweet chamando Arthur de anão físico e moral.
O próprio MBL sentiu o baque do escândalo, perdendo ilustres palestrantes que não queriam associar sua reputação ao caso, como Danilo Gentili e Monark. Imagina ser publicamente rejeitado pelo MONARK. A repercussão rendeu até matéria na Folha, com a sensível manchete Polêmicas nos tornaram leprosos e com ebola, dizem líderes do MBL em mensagens. Haja assessoria.
Dois anos após o incidente, a imagem de Arthur do Val parece ter se recuperado. Inelegível até 2030, ele retomou os trabalhos na internet, voltando a viver de migalhas de engajamento.
Curiosa, então, a decisão de publicar um romance.
Na ocasião do lançamento de RAVIER COM J, numa livraria em São Paulo, a fila dava voltas; centenas de jovens monocromáticos esperando pacientemente seu autógrafo.
Mesmo assim, o livro não virou nenhum sucesso de vendas. Mal lançou e já tá 30% off na lojinha do MBL, que ainda vende a camiseta ESSE IMPEACHMENT É MEU a preço cheio.
O sucesso de crítica também não veio. Um dos melhores achados da minha pesquisa foi uma resenha, publicada no finado Twitter, em que um jovem pontua aspectos positivos do livro — leitura leve, fácil de digerir, boas reflexões — e negativos — personagens rasos, cronologia confusa —, concluindo com a nota de 7,5.
Até aí tudo bem. Não é a pior nota do mundo. O interessante é que o leitor admite, já no início da thread, que ”esse foi o primeiro romance que eu li”.
Talvez seja o meu coração ingênuo falando, mas me parece que se o seu livro é a ÚNICA REFERÊNCIA de literatura que um adolescente tem, ele não deveria ser capaz de identificar que um personagem tá mal desenvolvido. Mesmo não tendo NENHUMA BASE DE COMPARAÇÃO, esse menino leu RAVIER COM J e pensou Hum. Tem alguma coisa errada aí.
Em entrevista ao podcast do canal Não é Imprensa — que você nunca tinha ouvido falar antes e eu também não —, Arthur conta que o irmão dele sempre insistiu que ele lesse Tolstói e Dostoiévski. Num dado momento ele cede e pega emprestado CRIME E CASTIGO, que ele descreve como “o romance mais famoso do mundo” (não é) e cujo dilema principal ele resume como “quer cometer um crime mas não quer, mas se comete também fica com culpa, mas também não sei o quê e pá.”
Sábias palavras. Na mesma entrevista, Arthur expressa grande admiração pelo aspecto literário da Bíblia, “a jornada-do-herói original”, e se refere ao budismo como “a religião da Cláudia Raia”. Escritor ele não é; talvez nem leitor ele seja. Então pra quê lançar um livro?
Foi com essa pergunta em mente que eu adquiri meu próprio exemplar, autografado!, de RAVIER COM J. E dizem por aí que eu não trabalho…!
RAVIER COM J (ARTHUR MOLEDO DO VAL, 2024)
Assim como HARRY POTTER, RAVIER COM J é a história de um menino que teve a sua vida definida pelas duas primeiras pessoas que conheceu no ensino médio.
Antonio, o melhor amigo, era “um rapaz alto e bonito. Seus cabelos castanhos claros estavam sempre de um jeito estiloso, mesmo quando totalmente despenteados.” Ao leitor atento, dois detalhes não passam despercebidos. Primeiro, não é assim que se pluraliza o adjetivo castanho-claro. Segundo, e mais importante, é que Arthur do Val descreve personagem igual secundarista montando ficha de RPG: pela cor e caimento do cabelo.
Jaimi, por sua vez, tinha “cabelos que se rebelavam contra todos os cortes”, dentes tortos e um queixo fino demais. Cabe observar também que Jaimi tem as duas primeiras letras do nome idênticas ao protagonista Javier, o que certamente não ajuda a diferenciar os dois numa leitura rápida.
Uma quarta pessoa igualmente importante à trama seria Helena, se em algum momento ela alcançasse o patamar de pessoa. Não chega a tanto.
Helena, dos “cabelos loiros, mais ou menos ondulados,” e cuja franja “dava um destaque especial a seus olhos verdes”, era o amor da vida de Javier, mas se apaixonou por Antonio. E só. A mulher não ganha um traço de personalidade, uma LINHA DE DIÁLOGO sequer, tirando uma longa alucinação de Javier no hospital — e aí é o próprio inconsciente do Javier usando a Helena de fantoche.
Seria até engraçada, se não fosse meio triste, a passagem que descreve o único desejo de Helena: “que, como num despertar de um sonho, Antonio pousasse o olhar na sua vida.” Deve ser a pior coisa que o Arthur do Val já falou de uma mulher loira; alguém por favor confira aí na Wikipédia e me avise.
Os demais personagens (homens) são de fato abençoados com alguma interioridade; mas não muita.
Antonio é sempre definido em oposição a Javier, do jeito mais preguiçoso possível — usando antônimos. Se os cabelos de Antonio são estilosos, os de Javier são rebeldes. Antonio é alto, Javier é baixinho; Antonio é prodígio, Javier se esforça.
Vou continuar dando exemplo pra você entender o tamanho do problema. Antonio odiava bajulação, Javier adora. Antonio era responsável, Javier, impulsivo. Javier era relaxado, Antonio, caxias. Isso não sou EU contrastando os dois; o livro literalmente diz “Javier tinha uma tendência a dar uma relaxada e curtir o momento que estavam vivendo. Mas Antonio era muito caxias.”
Talvez pareça estranho que um narrador aponte tão diretamente (e constantemente) a diferença entre dois personagens. Eu, da minha parte, achei genial. Conhecendo seu público, Arthur evita o típico floreio literário de deixar que o leitor interprete ações e decisões. Uma mente liberal, focada em eficiência, jamais hesitaria em ir direto ao ponto; e é por isso que o autor te diz exatamente como cada personagem se sente o tempo todo.
O resultado é uma leitura acessível, que não exige (e inclusive repele) qualquer esforço nosso. “Javier tinha duas virtudes que faltavam a Antonio: era extremamente criativo e não tinha medo de tomar iniciativa, às vezes, de uma forma muito impulsiva.” Ok! Qualquer coisa vai avisando.
Javier, Antonio e Jaimi eram inseparáveis, até que se separam. Acontece.
Enquanto Jaimi some no mundo, os dois melhores amigos entram pra um conservatório, onde “todos os professores concordavam que estavam diante de grandes promessas da música brasileira.” (Se a competição não fosse TÃO acirrada, esse entraria pro top 10 absurdos do livro: a ideia de professores concordando.)
Surfando no hype, Javier e Antonio fundam uma banda de jazz chamada All Blues ( ? ) que instantaneamente vira referência no gênero. “É óbvio que o show foi um sucesso,” escreve Arthur, como se tivesse imaginando uma historinha de super herói antes de pegar no sono.
All Blues ganha reconhecimento no meio musical e toca nas melhores casas de jazz; todas as coisas que acontecem a bandas universitárias. Sabe como é. E aí nasce o conflito central do livro: Javier não quer trabalhar com jazz porque jazz não dá dinheiro.
Antonio, ontologicamente oposto a Javier tal qual a dinâmica Sonic e Metal Sonic, se recusa a aceitar a ambição do amigo. Questão de princípio! “A gente tem que servir à arte, Javier. E não se servir dela.” Só daí cê já tira que Arthur do Val nunca conversou com um músico na vida; todo compositor que eu conheço depende de freela de Javascript pra pagar as contas.
Nesse vai-e-vem da briga, os dois ouvem na rádio uma canção familiar.
Vou dar uma resumida na história. Jaimi, que trabalha numa produtora musical, vendeu a composição que os três fizeram no ensino médio, tirando sarro da paixão de Javier por Helena. Intrigado, Javier visita o estúdio e recebe uma proposta de riqueza e fama (como é de costume a todo estúdio oferecer), sob a condição de renunciar a tudo que acredita — incluindo o próprio nome, que agora seria soletrado Ravier, com R.
Nesse pouco-disfarçado pacto com o diabo, Javier descobre que a fama não traz felicidade. (Caramba!). Bate o carro numa árvore, vira evangélico, entra em depressão, cai no esquecimento e morre aos 40 fazendo uma cirurgia plástica pra entrar na Fazenda. No seu enterro, Antonio fita com tristeza a lápide homenageando Ravier, e suspira: É Javier. Com J.
Mesmo usando uma fonte absurda de grande, RAVIER COM J mal enche cento e dez páginas— e longe de mim reclamar. É um favor que o Arthur me faz. Mas não deixa de ser engraçado que a história se desenvolva no ritmo rápido de um trabalho escolar baseado inteiramente num infográfico da revista Recreio.
Tamanha é a pressa do Arthur em pular de uma cena pra outra que a trama vira quase um esboço. Toda a adolescência dos protagonistas se passa em menos de quinze páginas. Nome, cor de cabelo, meia dúzia de adjetivo e tá ótimo. Vamos em frente. Lá pela página 70 rola a supracitada batida de carro— e é a batida com MENOS SUSPENSE da história da literatura:
Num momento de extrema empatia, me dou conta de que, assim como eu, Arthur do Val TAMBÉM quer se livrar dessa história o mais rápido possível. Tal coisa, tal coisa, tal coisa; pronto, próxima página.
Aliás, o que tem de erro de digitação aqui é loucura. O fato de que eu fui a primeira pessoa a logar RAVIER COM J no goodreads já me bastou como evidência definitiva de que só eu li esse livro, mas agora eu tou desconfiando que ele não foi nem REVISADO.
Tem letra faltando, palavra faltando, nome de personagem com acento onde não devia. O erro mais grave — e mais curioso — aparece nesse trecho aqui:
Estranho esse enrolavamprotegiam, né. Parece uma distração do autor; trocou de verbo e esqueceu de apagar a correção. Foi o que eu pensei até chegar nesse OUTRO parágrafo, vinte páginas depois:
Felizmente, uma visionária cultural como eu consegue enxergar pralém das convenções de escrita adotadas por iniciantes, como “tensão dramática” ou “revisão ortográfica”. E daí que tá tudo mal feito? A história em si pouco importa; RAVIER COM J é apenas um veículo pra visão de mundo do Mamãe Falei.
Todo o enredo do Javier — a tentação da fama, o abandono do jazz pelo pop, a infelicidade — é pano de fundo pra um grande SERMÃO contra a indústria cultural. Arthur se refere ao estúdio como “uma fábrica das piores músicas do mundo”, e pinta de vilão o cara da gravadora, K. G. (Karlos Gabiru. não vamos entrar nesse assunto). Em vez de se dedicar à arte, Javier produz “lixo cultural contemporâneo”; e paga por esse erro com a vida.
Mas pra alguém que parece se enxergar como parte da intelligentsia brasileira, o repertório do Arthur do Val é meio… fraco. Logo na primeira página de RAVIER COM J ele menciona “o minueto de Bach em sol maior”, e dá pra sentir ele estufando o peito de orgulho em conhecer o tipo de música que toca quando você abre uma caixinha de jóias.
Se música não é o forte dele, a própria prosa do Arthur já entrega que ele também não tem a leitura como um hobby.
Em certo trecho do livro, ele se refere ao silêncio de um funeral como silêncio fúnebre, que não é exatamente o jeito certo de usar essa imagem. Outra passagem relata que alguém, “Preso a um turbilhão de pensamentos, chegava até a balbuciar alguns resmungos.” Preso a um turbilhão? Balbuciar resmungo? A impressão é de que ele usa as palavras que acha bonitas, mesmo sem entender o que elas significam. Um resmungo é um balbucio. É basicamente a mesma coisa. Próxima frase!
Tudo intencional, claro. Coisa de gênio lançar uma crítica ao produto-cultural-medíocre em forma de um produto cultural aterrorizante de tão ruim. Metalinguagem! Camadas! Que outro motivo Arthur do Val teria pra chamar de “lixo” o trabalho dos outros e aí escrever um parágrafo assim?
Pra não ser injusta com o Arthur ( ?! ), dá pra notar que ele se empolga muito mais nas partes, digamos, filosóficas, do que no romance em si.
Toda hora ele solta umas lições de moral, meio que do nada. “Amizade verdadeira é sempre gratuita, não exige retorno nem reembolso.” “O amor não correspondido é confuso. E também triste.” Parece um pano de prato. Isso quando ele não interrompe a história pra dar uma bronca no protagonista: "Javier fez muita coisa errada, é verdade. Daria pra escrever outro livro só com a lista de todas as coisas erradas que ele fez." Outro livro? Tem certeza? Você mal conseguiu escrever esse!
Vou lançar uma hipótese.
Dada a insistência do irmão do Arthur de que ele lesse o básico do básico da literatura russa, e os comentários dele sobre a Bíblia ser uma obra-prima literária, algo me diz que a razão do Mamãe Falei ter publicado um romance — questão-chave aqui da nossa análise — é que ele simplesmente NÃO SABIA que podia ter escrito outra coisa.
É possível, e até provável!, eu diria, que ele não entenda que existem outros gêneros. Livro = Romance. Escrita = Ficção. Só isso explica ele ter se obrigado a escrever a fábula mais preguiçosa do mundo pra salpicar, aqui e ali, uma ideia mais elaborada:
Espero que a experiência negativa do fracasso de público e crítica não o desestimule. Dentro desse péssimo romance existe uma coleção de aforismos ligeiramente mais tolerável, e que venderia igual água!, se vendessem água a noventa reais na lojinha do MBL. Boa sorte a ele, e a todos nós.
Obrigada ao
pela sugestão de pauta / martírio!
tem alguma faixa de inscrição aqui no Substack que contemple adicional de insalubridade?
"enrolavamprotegiam" e "emprotegiam"... Bem vindo de volta Guimarães Rosa